quinta-feira, 5 de novembro de 2009

O toureiro e o violino




Existem fúrias que não advém da ferocidade. Elas existem dentro dos seres para seu próprio bem. Acreditamos que podemos racionalizar tudo dentro de nossos próprios princípios e éticas. Damos sentimentos bons ou maus à natureza, como se ela fosse parte de nós, quando o é o contrário. Nunca entendemos algo plenamente antes de acontecer. Depois que acontece, vasculhamos nossas falhas de discernimento e, em vão, tentamos acreditar que aquilo não mais se repetirá e, se repetir, será de maneira diferente, controlada, próxima de nossos sonhos.

É isso que Paco não sabia: que a maioria das coisas foge ao nosso controle e só podemos esperar qualquer salvação em um pouco de sorte ou daquela infindável cadeia de acontecimentos que provoca momentos que nos são favoráveis.

Damos nomes bonitos àquilo que não conseguimos captar com nossa parca inteligência: destino, fortuna, deuses. No final, o que resta é a sabedoria doída de saber que o inevitável poderia ser evitado e que, por mais que queiramos, ele sempre acontece, mesmo que em outras formas.

De profissão toureiro, Paco se especializou em produzir sons que confortavam qualquer animal, mesmo aqueles se diziam pertencerem às espécies mais sábias. Paco não via muita diferença em todos eles. Conhecia a fúria latente em todos e a distinguia apenas em graus. Uns tinham mais e outros tinham menos mas todos tinham. Grande parte dela era reprimida, enclausurada, fechada dentro de mundos dos quais se julgava que não haviam saídas. Mas ela sempre conhecia todos os limites e se esparramava para fora quando lhe convinha. Tinha muitas aparências: ás vezes vinha devagar, sondando terrenos, avolumando-se à medida que se alimentava do que lhe punham no caminho; em outras, explodia como átomos colidindo entre si, e depois se retraía, como lagartas em seu casulo.

De onde aprendera sua arte? Talvez de todos os paganinis e morfeus, cujos fantasmas ainda perduravam sobre a terra, e que buscavam, sempre, uma alma que lhes fosse afeita, para poderem transmitirem sua arte. Talvez lhe tivesse nascido dentro da falha de um DNA, que se contorcera a tal ponto, que não poderia mais se exprimir em físico e lhe sobrasse apenas se mostrar dentro de uma arte.

Qualquer som lhe chamava a atenção. Tentara reproduzi-los a todos, em todos os instrumentos que pululavam no mundo, dentro de uma seqüência que a mente julgasse agradável. Esquecera todas as notas musicais, com seus rabichos incompreensíveis, e criara outras, baseadas apenas no deleite que produziam.

Como não poderia tocar todos os instrumentos do mundo, procurou aquele em que se podia divisar do alto de suas notas um som maior, e esse, só poderia atingir todas as consciências se fosse através de um violino.

Em todas as espanhas que percorrera, doía-lhe a fatalidade que os homens impunham aos touros. Criados para serem a perfeição da fúria, traziam-nos às arenas, mostravam sua vitalidade, enroscavam-lhes bandeirilhas pontiagudas e picavam-nos para que o sangue escorrido lhes desse ódio no espírito, fraqueza nas pernas e uma visão míope de seus algozes. No fim lhe restavam espadas enterradas, à perfeição, na nuca e, cujos comprimentos lhes transpassavam os pulmões. No debater-se contra a morte, as lâminas os rasgavam por dentro e lhes concediam uma queda ovacionadas pelas multidões. Por fim, numa piedade estranha, perfuravam-lhes os cérebros para terminarem as mortes que as espadas começaram. Talvez ainda lhes restasse um pouco de vida quando suas orelhas fossem decepadas e os corpos fossem arrastados, tirados por cavalos.

Dessa crueldade toda, Paco queria se livrar. Pelas arenas o seu violino tocava um transe que propunha aos espectadores a necessidade de uma paz permanente e aos touros vinha apenas a de comer uma tenra grama e a de perpetuarem sua espécie dentro dos postulados de sua natureza. Paco e seu violino faziam com que todos os que tivessem ouvidos se tomassem de uma febre que ardia leve e descontraída, cujo principal sintoma era a vontade de ficarem juntos, em estranha comunhão.

Mesmos seus críticos mais ferozes, notadamente aqueles que sempre interpunham em suas frases coisas do tipo "respeito à tradição", enterneciam-se e mudavam sua opinião após subirem nas notas altas que Paco e seu violino elevavam, maiores que todos os everests.

Assim seguia Paco e seu violino, percorrendo as espanhas, domando touros bravios e todos aqueles que amavam a violência.

Mas chegou o momento que todos acreditaram que nunca chegaria. Das fossas abissais surgiu um touro em que não se via piedade ou fraqueza e do qual se dizia que a crueldade nascera com ele. Paco e seu violino chegaram a rir quando lhe falaram da ferocidade que havia naquele ser. Displicentemente tocou algumas notas e a paz surgiu imediatamente em todos aqueles que o rodeavam. Não havia vivente que não se comovesse com sua música e, talvez, até os não-viventes.

Marcaram o dia e na arena não sobrou espaço para mais ninguém. Câmeras, vídeos e máquinas faziam parte da bagagem que todos trouxeram. Todos queriam registrar o dia em que a paz dominaria a ferocidade.

Paco estava tranqüilo. Ajustou seu violino para que suas cordas vibrassem o mais plangente possível. Atrás de seu biombo, esperou o portão se abrir. O touro, chamado K£@ßum nem número tinha. Consideraram-no tão único que preferiram apenas lhe dar um nome.

K£@ßum saiu pelo corredor altivo e impávido. Percorreu a arena como se revistasse todos que ali estivessem ou como se procurasse um alvo. Mesmo no passo lento, podia-se ver que as cordas de seus músculos queriam arremessar-se contra alguém que ele marcasse como vítima.

Olhou firme para todos aqueles que se escondiam atrás das madeiras na arena e alguns até se encolheram mais dentro daquela proteção.

Quando ele parou do outro lado da arena, Paco e seu violino saíram de seu escudo. K£@ßum não esperou toques de ataque ou incentivos à sua investida. Apenas o vulto se mexendo fê-lo ver que Paco e seu violino eram o alvo. Escavou a terra como era o costume de sua raça e iniciou a corrida que deveria terminar com chifres varando carnes.

Paco nem se abalou. Pegou o seu violino e começou a tocar. A platéia se comoveu e ficou a delirar sonhos com aquelas notas. Mas K£@ßum não parou sua arremetida. Seguia firme, embalando cada segundo mais sua velocidade.

Paco e seu violino se afinaram mais. Tocaram as melhores notas que sabiam e algumas que na hora inventaram mas não conseguiam deter a massa que lhes advinha e em cuja fronte se destacavam dois punhais. Paco e seu violino não quiseram recuar. Tocaram cada vez mais belo e mais forte, tentando deter com a beleza toda a ira do universo.

Nada disso lhes adiantou. Quando terminou o tempo, algo lhe passou pela barriga e arremessou-o pelo ar. Quando caiu, outro algo lhe esmagou o tórax e seu violino, repetidas vezes. Procurando algum consolo, ainda tentou arrebatar para si o pouco que restara da madeira envernizada e das cordas arrebentadas de seu violino. Expirou muitas vezes, como se ainda não acreditasse que a ferocidade e fúria podiam acabar com a beleza e a arte.

Já gasto em sua fúria, K£@ßum voltou a percorrer a arena novamente, procurando uma nova vítima. A multidão ensandeceu e lhe gritava toda sorte de palavras e aberrações. Batiam os pés como se quisessem uma reparação do mau que Paco e seu violino tinham sofrido. Gritavam aos céus pela piedade de todos os deuses e pela justiça de todos os homens. Mas nada disso abalava K£@ßum. Ele andava pela arena, pelos seus pés, tentando decifrar todos os gestos e expressões, pois era só isso que podia fazer. Ele apenas podia tentar descobrir o que lhes queriam falar, o que lhes queriam transmitir, pois nenhum de seus ouvidos vibrava com som algum que lhes chegassem, surdos desde que se conhecia.

Caius_c


O autor, Caius_c, nome literário de João Alberto Padoveze.

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